domingo, 30 de agosto de 2015

São Paulo Review - As Donas da Rua por Tiago Savio

Donas da rua são aquelas que a conquistaram. À custa de seus ossos e de suas sanidades derrotaram as calçadas, as sarjetas, o asfalto. Também foram derrotadas, mas sobrevivem a tudo que lhes é tirado a cada dia. Não como heroínas, mas como mulheres, com suas possibilidades únicas de expressão.
Há alguns anos, a escritora Beatriz Grimaldi vem procurando pelas ruas de São Paulo as vozes invisíveis de mulheres que perderam quase tudo, mas que ainda têm suas histórias. Ela visita albergues, centros de acolhida, viadutos, praças e lugares vagos nesta cidade toda ocupada. Leva alguns presentes, conselhos e uma possibilidade de interlocução, uma rara possibilidade de serem ouvidas pelo mundo que as ignora.
A cada semana, o blog As Donas da Rua, criado por Beatriz, expõe a relação que não temos com essas pessoas que vivem nas ruas da nossa cidade. Mostra retratos que sempre estiveram em nossas paredes, ainda que do lado de fora delas, mas que nos são invisíveis como camaleões urbanos, constantemente prontos a desaparecer no cinza.
Por meio de impressões da autora, entrevistas, fotos, vídeos, e pequenos textos ou desenhos feitos pelas próprias mulheres ali enfocadas, o trabalho monta imagens de mulheres sem disfarces e nos convence de que todas elas são humanas e reais como qualquer um de nós. São qualquer um de nós, sem os fundamentos do que nos garante segurança e equilíbrio. Qualquer um de nós que se perdeu e caiu de nossos andares direto no fundo do chão e nunca mais conseguiu voltar, seja por causa das drogas, da falta de estrutura, ou simplesmente do fato de terem sido tão deixadas de lado pela sociedade que se convenceram que não deveriam mais existir.
Cada uma delas nos conta sobre seus abismos e salvações. Suas possibilidades de futuro ou passado. Elas já foram faxineiras, prostitutas, babás, donas de casa, vendedoras, recepcionistas, mas hoje são mulheres frágeis, perdidas, famintas por existirem em seu próprio imaginário. Mostram-nos subjetividades emolduradas em seus velhos cobertores de resíduos de fibras sintéticas. Suas casas, seus abrigos, o calor de seus aconchegos feitos de resíduos. De suas fibras. Das sínteses todas que lhes faltaram.
Mesmo despojadas das proteções ilusórias que temos em nossos pequenos santuários de concreto e tijolos, mesmo despojadas de tudo que acreditamos que nos define, o trabalho de Beatriz nos mostra que em cada uma dessas mulheres ainda existem inúmeras possibilidades de humanidade. E de feminilidade.
Trecho:
Histórias. As que são possíveis de serem contadas, para dentro de nossas casas. Para dormirem ao nosso lado. Reservadas nos seus mundos elas pedem passagem. Nomes e faces.  Joana, Silvia, Telma, Tuva. Outras. Todas. Tárika, Aparecida. Tantas. Caixas de ossos e desejos. Entre eu e elas, o tamanho do corpo, a cutícula, a água quente  do banho. A fala. Entre elas e quem agora as lê, os ruídos. No papel a sombra. Nas janelas as persianas semi abertas disfarçam o desconhecido. Mulheres, vozes em mim.
http://saopauloreview.com.br/as-donas-da-rua-entre-a-poesia-e-as-sarjetas/

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